Para começar o ano, e a coluna, em grande estilo, que tal uma peça teatral? Pareceu engraçado e até rimou, mas uma coluna cultural que se preze tem que gerar uma certa curiosidade enriquecedora. Nem que seja para se aprender algo mais. Resolvi então trazer para vocês um ensaio crítico, um melhor, uma leve análise sobre a obra de Paulo Gustavo, esse ator fantástico que conheci por ai, nessa louca vida de jornalista. Bem vindo e boa leitura.
O primeiro espetáculo escrito e dirigido por Paulo Gustavo, há mais de um ano em cartaz é um sucesso estrondoso de público e de crítica. “Minha mãe é uma peça” começou tímida, como uma esquete para uma outra peça teatral: “Surto”. E de lá para cá só aumentou. Depois que se formou na Casa das Artes de Laranjeiras – CAL, Paulo Gustavo aumentou a esquete e mesmo sem nenhum patrocínio, estreou no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema.
Com ajuda do boca-a-boca, a peça foi ficando famosa e Paulo teve a oportunidade de levá-la para outros teatros e públicos. O monólogo conta a história de uma senhora de meia idade, que criou os três filhos sozinha após a separação do marido, se vê as voltas com a independência deles, que são sua razão de viver. O drama de ‘Dona’ Hermínia, mesmo mostrado de forma irreverente, é bem triste. A mulher que dedicou toda a sua vida para os filhos, agora tem que conquistar e acreditar em novos afazeres e diversões para não passar o dia dentro de casa à espera daqueles.
Porém não é o que não acontece. ‘Dona’ Hermínia ainda não tem a consciência de que os filhos, agora jovens e adolescentes, têm a necessidade de seguir o rumo da sua vida. E ela, tem que seguir o dela.
Em alguns momentos, a personagem parece ter reagido à situação de quase abandono dos filhos, quando resolve pegar a bolsa e dar uma volta na rua. Mas essa vontade não se completa: a cada vez que se prepara para sair o telefone toca e ela não consegue. É num destes momentos que ela se mostra antenada com a tecnologia, em conversa com Titia Zélia, a personagem a convida para participar do Orkut. Isso é muito engraçado para quem assiste porque até então aquela mulher não parece ter noção da realidade a sua volta.
Uma outra atitude muito interessante da personagem é a quantidade de vezes durante a peça em que ela relembra algum fato do passado. Seja para reclamar dos filhos, lembrar do passado onde ainda era casada ou de férias na juventude, ‘Dona’ Hermínia passa por diversos flashbacks, na maioria das vezes sentada no sofá da sala. Neste momento, a luz de palco que está sempre tão clara e forte, sofre uma redução, ou seja, fica bem levinha e fraca e a trilha sonora, antes agitada, passa agora para uma melodia triste.
O espetáculo é por vezes engraçado, a platéia ri e se identifica com a problemática característica das mães e por vezes estereotipada. Nesses momentos, percebemos a catarse provocada pelo texto, em que a platéia se identifica e aquela personagem vai ganhando a empatia do espectador a partir da aproximação emocional, que vemos com muita freqüência no teatro aristotélico. Porém, em momentos de tristeza da personagem é que se percebe o quanto aquela mãe hoje sofre e se sente solitária. E um espectador mais atento poderá perceber nessas situações a reflexão que o autor muito discretamente faz sobre a vida de uma mulher assim. A peça não chega a promover uma aproximação crítica, como no teatro Brechtiano, pois não há uma ruptura com a cena. Mas é sugerido uma leve reflexão do momento vivido por ‘Dona’ Hermínia pelo envolvimento que a cena causa.
O fato de ‘Dona’ Hermínia não ter mais o dia recheado de afazeres domésticos a deixa muito susceptível a fofoca alheia. A janela para a rua é sua aliada e é onde ela passa boa parte da peça. É de lá que a mulher vê seus filhos saindo com o pai e a madrasta “novinha e insuportável”, que quer saber mais do que ela na educação dos filhos, ou ainda que combina com a vizinha-manicure o seu horário para embelezar as unhas. É nesse ambiente também que a personagem interage com os vizinhos, chegando até a brigar com uma mais intrometida, e observa o vai e vem dos transeuntes na rua e as mudanças de tempo, ora vai chover, ora o tempo está abrindo.
O figurino e caracterização de ‘Dona’ Hermínia é muito colorido e divertido. O ator Paulo Gustavo se transforma em uma mulher de meia idade desde os trejeitos até a voz, iniciando o envelhecimento e rouquidão. Os rolinhos na cabeça cobertos por um lenço, o avental e o vestido florido caracterizam uma dona-de-casa em plena atividade. Mas é a bolsa de sair o grande destaque. Nela se encontra tudo: pente, contas a pagar, lista de compras, caneta, óculos e até uma enorme caixa de remédio para dor de cabeça.
A casa de ‘Dona’ Hermínia é muito ampla e alegre. O cenário foi trabalhado com muito cuidado para que este represente a sala de estar de uma casa de classe média muito provavelmente do subúrbio. Vemos o sofá com almofadas e uma mesinha, a parede com o telefone, um biombo que leva à outro cômodo da casa, a porta de entrada e a janela para a rua. Quadros em estilo brega e um vaso com uma samambaia estão pendurados na parede. Na mesinha vemos também fotos dos filhos em porta-retratos.
Com a direção de João Fonseca, o espetáculo aproveita muito bem o espaço cênico. A movimentação do ator é impecável. Todos os espaços têm uma função e serão aproveitados em algum momento. Na direção da janela foi colocado um tablado de forma em que o ator possa se destacar nestes momentos. A idéia é dar a sensação de um palco mesmo para aquela personagem extravasar seus sentimentos. Aparentemente o ator não improvisa muito. Não ocorre aquela conversa entre ator e espectador sobre um telefone celular que tocou ou uma pessoa que se parece com o filho dela, ou ainda de chamar alguém ao palco, o que transmite para as pessoas até uma certa segurança. Já pensou uma mulher louca dessa, em época da menopausa, interagindo com o público? Muitas pessoas poderiam ficar incomodadas se essas situações ocorressem. Percebe-se que o diretor teve esse cuidado.
Essa mulher de meia idade retratada por Paulo Gustavo tem em suas características principais o trabalho corporal pesquisado pelo autor. Ela anda mancando em enormes saltos altos, faz biquinho quando algo não lhe agrada, olha inúmeras vezes para as unhas, se olha no espelho constantemente, e bate com a mão na perna quando está nervosa. O corpo da personagem é completamente docilizado, com características específicas de donas de casa. Esse corpo é disciplinado pelos afazeres domésticos e pelo discurso familiar, se mostrando bastante submisso à situação vivida pela personagem.
Em um determinado momento da peça acontece a libertação da personagem. Ocorre uma reflexão de ‘Dona’ Hermínia sobre a vida que está levando, o jeito como é tratada pelos filhos e até o que poderia fazer da sua vida. É ai que ela resolve embarcar no sonho da filha, quando esta desiste de fazer um teste importante para o teatro, na qual foi convocada enquanto estava em viagem com o pai no final de semana. ‘Dona’ Hermínia resolve encarar a realidade e se dirige até o teatro para o teste. Pede ao diretor que lhe conceda a oportunidade e este permite. E é ai que ‘Dona’ Hermínia dá um show. Canta e dança funk, rebola, e se diverte muito. O gestual da personagem se modifica: ela agora está curtindo o apogeu, dança em ritmo acelerado, mexe os braços e as pernas agitadamente, diferente do que víamos até então. Chega ao final o espetáculo de uma hora de duração no mesmo ritmo frenético que iniciou. A reação do público neste momento é de euforia e entusiasmo, afinal aquela senhorinha rebola as cadeiras num funk super agitado. Durante todo o espetáculo, o público reage, se envolve e se emociona com a personagem, mas é no final que a apoteose acontece.
“Minha mãe é uma peça” traz a tona discussões como a solidão na velhice e a relação entre mãe e filho. Além de entreter e fazer rir, e muito, o espetáculo ajuda a entender o que acontece com as mães quando os filhos resolvem sair de casa, casar, ser independentes, ou seja, crescer. É uma ótima opção para todas as idades.
Ficha técnica:
Peça Teatral: “Minha Mãe é uma Peça”
Texto e interpretação: Paulo Gustavo (Indicado ao Prêmio Shell de Melhor Ator)
Direção: João Fonseca
Iluminação: Eduardo Nobre
Cenários: Nello Marrese
Figurino: Patrícia Muniz
Trilha sonora: João Fonseca e Marco Novack
Técnica Vocal: Rose Gonçalves
Até o dia 15 de fevereiro de 2009 a peça está no Teatro dos Grandes Atores –Rio de Janeiro, RJ
Bibliografia:
SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas, SP: Autores Associados, 2006
Fontes:
-AMARAL, Fábio. Bate-Papo: Paulo Gustavo. Quem é o cara por trás da dona de casa que é a sensação da temporada teatral carioca. Publicado em 08 de abril de 2007. http://propriaspalavras.blogspot.com/2007/04/bate-papo-paulo-gustavo.html - acesso em 01/11/2008
-ESCANSETTE, Roberta. Ego viu: Espetáculo ‘Minha Mãe é uma Peça’ fala com humor da relação entre mães e filhos. Publicado em 26 de fevereiro de 2008. http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL323625-9798,00-EGO+VIU+ESPETACULO+MINHA+MAE+E+UMA+PECA+FALA+COM+HUMOR+DA+RELACAO+ENTRE+MAE.html
- acesso em 01/11/2008
-REIGOTO, Diego. Minha mãe é uma peça. Publicado em 29 de maio de 2008. http://polaroidescriticas.blogspot.com/2008/05/minha-me-uma-pea.html - acesso 01/11/08
-Site Attenados. “Minha Mãe é uma Peça” chega aos palcos do Citibank Hall / RJ para apenas duas apresentações. Sem data de Publicação. http://www.anttenados.com.br/noticias/index.php?noticia=4760 - acesso em 01/11/2008.
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Abril 2009
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